sábado, 22 de novembro de 2008

Reportagem x anunciantes: a revista na era capitalista

As 69 primeiras páginas da Veja
por Wilson Bueno*

É razoável imaginar que o leitor de revistas de caráter jornalístico, deve, quando tem acesso a uma delas, privilegiar as informações e sobretudo as informações de qualidade. Um bom veículo jornalístico se caracteriza por notícias e reportagens, se possível pautadas pela redação em função de certos critérios tradicionais na área, um dos quais o interesse público.

Tudo bem, os anúncios fazem parte do negócio e numa sociedade moderna, capitalista ou não, eles estão aí por toda a parte, seduzindo-nos especialmente a consumir celulares, fast-food, carrões de todo o tipo, bebidas, medicamentos e outras coisas vistas pelo cidadão como normais ou indispensáveis.

Mas há limites na relação entre o espaço editorial e o espaço comercial que deveriam ser respeitados , sobretudo quando há uma contaminação de interesses privados ou públicos em detrimento da qualidade da informação. Na prática, é isso a que estamos assistindo recorrentemente nos veículos brasileiros, com algumas poucas exceções que merecem ser saudadas.

Dentre estas exceções, obviamente não está, a meu ver, a revista Veja, que não se caracteriza há tempos pela excelência editorial, muito pelo contrário, embora mantenha a liderança em termos de tiragem (o leitor brasileiro é pouco exigente mesmo) e o seu cinismo editorial. Blasfema contra as ideologias e tem a sua própria, comprometida com os interesses de determinados grupos, em especial aquele que a sustenta, como toda empresa ou corporação de mídia nesse país. Até aí nada tem de diferente. Os monopólios são parecidos na indústria da comunicação, na de medicamentos, na de biotecnologia, agroquímica ou na tabagista e comungam do mesmo credo: o lucro em primeiro lugar e os adversários têm que ser banidos do mapa, a qualquer custo.

Nesta semana, ao que parece, a Veja exorbitou e é interessante ver alguns dados. Tomemos as primeiras 69 páginas da revista, incluída aí a capa, para seguir a numeração adotada pela publicação.

Pois bem, vamos aos números. Quantas reportagens ou mesmo notícias na verdadeira acepção da palavra, encontramos nestas 69 páginas? Ora, se tirarmos as páginas amarelas tradicionais, que ocupam 3 páginas permeadas por uma página dupla de publicidade, nenhuma reportagem. Isso mesmo. A Veja, nas 69 primeiras páginas desta edição, dedica 46 páginas para publicidade (e não contei alguns terços de páginas, aquelas lingüetas com anúncios de clínicas que tratam de problemas de ereção), reservando as demais (23) para um ou outro colunista (ou mais apropriadamente cronista ou humorista de prestígio) como Lia Luft e Millor, expediente, carta do leitor, e colunas com pouca inteligência e densidade, como Radar, Imagem da Semana , Holofote, Veja Essa).

A primeira reportagem aparece na página 70 e está desatualizadíssima porque diz como os candidatos à prefeitura chegaram à reta final (segundo turno), quando todos nós, no final da semana quando a revista chegou às bancas e em nossas casas, já estávamos tomando contato do resultado definitivo e acompanhando a abertura das urnas. Aliás, a data da revista (29 de outubro) é mesmo posterior às eleições do segundo turno.

Em jornalismo, costumamos dizer que se trata de matéria fria, como boa parte da revista Veja desta semana, uma "cozinha" terrível porque certamente está faltando redação, provavelmente engolida pelo comercial, cada vez mais competente a ponto de reduzir a redação a uma posição secundaríssima.

Se considerarmos a revista com um todo (164 páginas, incluídas a capa), vamos encontrar no total 75 páginas de publicidade. Se incluirmos as 20 páginas do encarte Veja especial Autos, um informe publicitário, teremos 184 páginas e 95 de publicidade, uma proporção dramática para uma revista de caráter jornalístico. Notícias, reportagens de verdade representam cerca de um terço da Veja, ou seja ela está mais para catálogo publicitário e para espaços assinados ou de notinhas tipo almanaque do que uma publicação efetivamente pautada pela redação.

O jornalismo brasileiro de revista, com poucas exceções, está caminhando para isso, ou seja pouco de jornalismo (em quantidade e qualidade porque está sobrando matéria gelada, requentada e outras modalidades menos votados) e muito de projetos de mercado, publieditoriais. Isso tem explicação: com a baixa qualidade da informação, tem sido mesmo difícil para as revistas se sustentarem apenas com a venda e as assinaturas . Daí a apelação, como a da Veja, é inevitável. Os jornais já fazem isso há algum com promoção de fascículos, CDs, livros encalhados e assim por diante. E a Caras já inseriu faca, colher e outras coisas malucas para empurrar a revista.

Evidentemente, o exemplo da Veja não é único e só chama a atenção porque se trata, ainda, da revista de maior circulação e que um dia já deu sua contribuição ao jornalismo brasileiro. Hoje, a contribuição relevante é muito pequena e ocorre aos espasmos, apenas em tempo de escândalos políticos.

É necessário, tendo em vista esta dura realidade, rever os modelos e conceitos. Vai ser difícil a imprensa culpar as escolas de Jornalismo por essas mazelas todas porque, na prática, os jornalistas pouco têm participado destes projetos, que andam sendo liderados pelos departamentos comerciais e por relacionamentos pessoais e comerciais de empresários da comunicação que andam loteando os espaços para quem se dispuser a pagar por eles.

A situação não é melhor nas revistas segmentadas (há exceções, felizmente) que se mantêm reféns de anunciantes e que , em muitos casos, exibem, sem ficarem coradas, reportagens com o cheiro ruim de jabá, matérias pagas dissimuladas, operações casadas entre anúncios e espaço editorial, como os exemplos horrorosos das edições "as melhores empresas para trabalhar" e outros rankings sem valor algum.

As revistas brasileiras (há exceções, muito poucas) não têm sido mais produzidas com os neurônios dos jornalistas, mas com a grana dos que as financiam e andam pobres, sem inteligência, com gosto e aparência de coisa velha, mofada, completamente descartáveis.

A qualidade do jornalismo brasileiro nada tem a ver com a exigência ou não do diploma (embora a contribuição de alguns cursos de jornalismo tenha sido fundamental para oxigenar algumas redações) mas com a cabeça dos empresários da comunicação que andam mais preocupados em agradar anunciantes do que em investir realmente na informação qualificada. Como o jornalismo brasileiro em geral, o jornalismo de revista é preguiçoso, burocrata, refém de agências e assessorias e sobretudo de empresas que têm utilizado o espaço editorial e publicitário para o processo sujo e não ético de limpeza de imagem, incluída aí a praga do marketing verde, que tenta nos convencer de que a indústria tabagista, agroquímica, de papel e celulose ou mineradora, dentre outras, é sustentável. História para boi dormir ou piada de gosto discutível?

Está na hora de reiventar o jornalismo e sobretudo o jornalismo de revista, que está mais para catálogo de produtos e para fábrica de congelados (de tão frio) . Aquela imprensa viva, ativa, investigativa de que todos gostamos permanece cada vez mais na memória.

Certamente, estou errado na opinião dos empresários e profissionais de propaganda. A Veja, com seu número recorde de páginas de publicidade, talvez ganhe o prêmio de veículo de ano. Afinal de contas, pelos critérios atuais, revista bem sucedida não é aquela que está repleta de anúncios? Viva a Veja. Para quem gosta é prato cheio.

Continuo preferindo o Paulo Freire que um dia desses mereceu comentários infelizes da revista, que não consegue reconhecê-lo como um dos maiores educadores da atualidade. Vai ver que a Veja julga que este lugar deva ser ocupado por um de seus patrões, provavelmente tidos por ela como baluartes da democracia, da ética e da educação. Só para entrar no clima das eleições, entre Paulo Freire e Vitor Civita, você votaria em quem? Quem maior contribuição deu à educação brasileira?

Se peguei pesado, peço desculpas, mas o cinismo empresarial me irrita profundamente. Coisa de jornalista tradicional, que ainda prefere ler as reportagens nas revistas de caráter jornalístico e que julga que o dedo do comercial deveria estar em outro lugar, não nas redações. Aonde? Sugestões são aceitas, mas, por favor, respeitem o colunista.


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* Wilson da Costa Bueno é jornalista, professor da UMESP e da USP, diretor da Comtexto Comunicação e Pesquisa. Editor de 4 sites temáticos e de 4 revistas digitais de comunicação.
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Exercício:
Faça análise do conteúdo de três revistas de um segmento (a escolher) com base nos argumentos de Bueno no artigo acima.
Também, confira abaixo os argumentos da Revista Veja (em 2007) quanto ao crescimento de páginas de anunciantes.



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Carta ao leitor

Edição 20375 de dezembro de 2007

Esta edição de VEJA apresenta, no total, 240 páginas. Destas, 121 são de reportagens, entrevistas e artigos, quarenta acima da média. As 119 restantes são de publicidade – um recorde em edições regulares da revista. São números que impressionam e nos enchem de orgulho. Para além de refletir o bom momento da economia brasileira, demonstram o grau de credibilidade, amplitude e prestígio da maior e mais influente revista do país.

Esse prestígio pode ser medido de outras formas. Antes de mais nada, pela qualidade dos seus leitores. Eles formam um contingente de quase 1 milhão de assinantes e cerca de 200 000 compradores em bancas e supermercados. Nos pontos-de-venda espalhados de norte a sul do Brasil, a circulação de VEJA é o dobro da soma da de todas as outras revistas semanais de informação, de acordo com os dados mais recentes do Instituto Verificador de Circulação (IVC). A qualidade e a quantidade de leitores de VEJA atraem, é claro, um grande número de anunciantes igualmente qualificados. Juntos, leitores e anunciantes são a base material da independência, isenção e liberdade de expressão do jornalismo da revista. Os assinantes, os leitores de banca e os anunciantes impulsionam VEJA em sua missão primordial de servir ao Brasil.

Como não poderia deixar de ser, o cardápio editorial desta semana é ainda mais diversificado do que o usual. Traz desde as últimas peripécias subterrâneas do senador Renan Calheiros até a extraordinária expansão dos cartões de crédito e débito no país. VEJA também responde a dezenas de dúvidas a respeito da TV digital, uma novidade que está para entrar em todos os lares brasileiros, revela a imponência dos templos-espetáculo e explica como a medicina encara as doenças ligadas às emoções. A extensa variedade de assuntos cobertos habitualmente por VEJA, aliada à sua credibilidade, transformou a revista numa referência nacional. Não é por outra razão que, na pesquisa de 2007 da Associação Brasileira de Anunciantes, feita em parceria com a Top Brands Consultoria e Gestão de marcas, a revista sobe de 40% para 45% em citações espontâneas, ficando atrás apenas de OMO, Coca-Cola e Visa como uma das marcas mais conhecidas e respeitadas do país.

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